Quanto mais se busca o nascente, mais perto se chega do escuro da noite.
terça-feira, 29 de setembro de 2015
O sistema ameaça
No sistema de lucro a qualquer preço, a economia de produção e a econômica predatória, caminham lado a lado, de mãos dadas, indiferentes com o que vai acontecer com as futuras gerações.
Essas forças produtivas se tornaram forças destrutivas não porque fracassaram, mas porque foram enormemente bem sucedidas.
Essas forças produtivas se tornaram forças destrutivas não porque fracassaram, mas porque foram enormemente bem sucedidas.
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segunda-feira, 28 de setembro de 2015
O discurso anticapitalista do Papa Francisco
ean-Michel Dumay - Le Monde Diplomatique
Diante de uma multidão reunida na Praça do Cristo Redentor, em Santa Cruz, a capital econômica da Bolívia, um homem vestido de branco repreende “a economia que mata”, o “capital transformado em ídolo”, “a ambição sem limites do dinheiro que comanda”. No dia 9 de julho, o chefe da Igreja Católica não se dirigia apenas à América Latina, que o viu nascer, mas ao mundo todo, que ele procura mobilizar para colocar um fim na “ditadura sutil” que exala o mau cheiro do “esterco do diabo”.1
“Precisamos de uma mudança”, proclama o papa Francisco três dias antes de incitar os jovens paraguaios a “desafiar a ordem”. Em 2013 no Brasil, pediu às pessoas que atuassem como “revolucionárias” e se posicionassem “contra a corrente”. Em suas viagens, o bispo de Roma profere um discurso cada vez mais virulento sobre o estado do mundo, sua degradação ambiental e social, e usa expressões fortes contra o neoliberalismo, o tecnocentrismo e um sistema econômico de efeitos nefastos: uniformização de culturas e “globalização da indiferença”.
Em junho, nessa mesma linha, Francisco dirigiu à comunidade internacional um “convite urgente para um novo diálogo, o diálogo pelo qual construiremos o futuro do planeta”. Nessa encíclica sobre a ecologia, chamada Laudato si’ (“Louvado seja”), chama cada um, fiel ou não, para uma revolução de comportamentos e denuncia um “sistema de relações comerciais e de propriedade estruturalmente perverso”.
O pontífice assegura que outro mundo é possível, não no Juízo Final, mas aqui embaixo e agora. O papa celebridade, na linha midiática de João Paulo II (1978-2005), fragmenta e divide: por um lado é canonizado por figuras da ecologia e altermundialistas (Naomi Klein, Nicolas Hulot, Edgar Morin) por “sacralizar o desafio ecológico” em um “deserto do pensamento”;2 por outro, demonizado pelos ultraliberais e pelos céticos em relação à questão climática, capazes de descrevê-lo como “a pessoa mais perigosa do mundo” – como o caricaturou um polemista do canal ultraconservador norte-americano Fox News.
As direitas cristãs se inquietam ao ver um papa de discurso esquerdista e reticente sobre o aborto. E os editorialistas da esquerda laica se perguntam sobre a profundidade revolucionária desse homem do Sul, primeiro papa não europeu desde o sírio Gregório III (731-741), que se escandaliza diante do tráfico de imigrantes, pede apoio aos gregos e rejeita o plano de austeridade, nomeia um genocídio (dos armênios) de “genocídio”, assina um quase acordo com o Estado palestino, apoia sua testa em oração no Muro das Lamentações contra a separação que os israelenses impõem aos palestinos e se aproxima de Vladimir Putin sobre a questão síria quando a tendência, entre os ocidentais, é sancionar a Rússia pelo conflito ucraniano.
“Ele colocou a Igreja novamente no cenário internacional”, analisa Pierre de Charentenay, especialista em Relações Internacionais na revista jesuíta romana Civiltà Cattolica. “E mudou a aparência da instituição. Ele é o campeão do altermundialismo e questiona o conjunto do sistema.”
Precisamente, o que diz o primeiro papa jesuíta e sul-americano é o seguinte: a humanidade carrega a responsabilidade pela degradação planetária e deixa o sistema capitalista neoliberal destruir o planeta, “nossa casa comum”, semeando desigualdade. A humanidade precisa romper com uma economia – como diz o economista, e também jesuíta, Gaël Giraud – “que desde Adam Smith e David Ricardo exclui a questão ética, impondo a ficção da mão invisível” que deveria regular o mercado. Essa mão precisa, atualmente, de uma “autoridade mundial”, de normas restritivas e, sobretudo, da inteligência dos povos a serviço de quem é urgente redirecionar a economia. Porque a solução, política, está em suas mãos, e não nas mãos das elites, acometidas pela “miopia das lógicas de poder”.
Para o papa, a crise ambiental é, antes, moral, fruto de uma economia desligada do ser humano, na qual as dívidas se acumulam: entre ricos e pobres, Norte e Sul, jovens e velhos. E na qual “tudo está conectado”: pobreza-exclusão e cultura do desperdício, ditadura do curto prazo e alienação consumista, aquecimento global e congelamento de corações. Dessa forma, “uma abordagem ecológica verdadeira sempre se transformará em abordagem social”. Convocada a se repensar, a humanidade precisa buscar uma “nova ética nas relações internacionais” e uma “solidariedade universal” – é o que pedirá Francisco na Assembleia Geral da ONU no dia 25 de setembro, no lançamento dos Objetivos do Milênio para o Desenvolvimento.
Sem dúvida, nada disso é novo. “Francisco se insere como uma bonita continuidade na linha do Concílio do Vaticano II [aquele ocorrido entre 1962 e 1965, cujo objetivo era abrir a Igreja ao mundo moderno]”, constata Michel Roy, secretário-geral da rede humanitária Caritas Internacional. Assim, o pontífice revisita a doutrina social da Igreja elaborada na era industrial e alinha suas convicções às de Paulo VI (1963-1978), primeiro papa das grandes viagens intercontinentais. Depois da reforma de João XXIII (1958-1963), foi ele quem fisicamente saiu primeiro do papado da Itália, internacionalizou o colégio dos cardeais, multiplicou as nunciaturas (embaixadas da Santa Sé) e as relações bilaterais com os Estados.3 Também foi Paulo VI quem levou a Igreja para além de suas competências restritas de guardiã das liberdades religiosas e tornou-a “solidária com as angústias e penas de toda a humanidade”.4 Para ele, desenvolvimento era o novo nome da paz; uma paz entendida não como um estado, mas como o processo dinâmico de uma sociedade mais humana pelo compartilhamento da riqueza.
Contudo, se por um lado existe essa continuidade – para alguns, inclusive, ela representa o ápice da aposta católica empreendida nos anos 1960 –, por outro é difícil ignorar que o pontífice argentino vai além de seus predecessores. Apesar de o polonês João Paulo II e o alemão Bento XVI não economizarem no discurso antiliberal, eles ficaram marcados pelo rigor doutrinal. O último foi acometido também por alguns “contratempos” que a administração do Vaticano teve certa dificuldade em contornar, como o caso VatiLeaks: a difusão de documentos confidenciais que acusavam a Santa Sé de corrupção e favorecimento ilícito, notadamente em contratos assinados com empresas italianas.
Há duas opiniões sobre as razões da renovação atual: uma delas defende que se trata do contexto, e a outra, de que se devem a características inerentes ao homem. “No plano ético-político, Francisco preenche um vazio em nível internacional”, constata François Mabille, professor de Ciência Política na Federação Universitária e Politécnica de Lille e especialista em diplomacia pontifical. Ele é o papa pós-crise financeira de 2008, como João Paulo II foi o do fim do comunismo. “Ao realizar um aggiornamento da doutrina social, Francisco introduz o pensamento sistêmico na Igreja, segundo o qual todos os fatores sociais estão relacionados. Além disso, ocupa com sucesso o lugar da reivindicação de protesto”, analisa Mabille. E acrescenta: “Ele tem senso de urgência. O tempo da Igreja já não era o tempo do mundo. Tudo ia muito rápido para Bento XVI. Francisco sentiu a necessidade de a Igreja estar no passo da emancipação, e não mais da reação”.
Antes de ganhar o mundo, contudo, Francisco estremeceu a própria casa. Adepto de uma sobriedade que compartilha com Francisco de Assis, de quem emprestou o nome, instaurou um papado preocupado com o exemplo. Renunciou a atributos de vestimentas e hábitos honoríficos e foi viver em um quarto e sala de 70 m², em vez dos luxuosos apartamentos pontificais. O papa deseja atingir o campo simbólico e, para isso, não se restringe à palavra: empreende gestos concretos – o que tem seu peso em uma sociedade pautada pela imagem.
Dessa forma, como um bom samaritano, aparece sempre direto, espontâneo, cara a cara. Designado por seus pares para reformar em profundidade a Cúria, ou seja, o aparelho estatal da Santa Sé, Francisco fez uma lista de quinze males que acometem a instituição, marcada por um clientelismo à moda italiana. Entre os itens, o “Alzheimer espiritual” e, em primeiro lugar, o hábito de “acreditar-se indispensável”.5
TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO NÃO MARXISTA
Para governar, o papa se cercou de uma guarda próxima com oito cardeais. Criou comissões para reformar as finanças e a comunicação, multiplicou as instalações de especialistas laicos para aconselhar sua administração, criou um tribunal no Vaticano para julgar bispos que acobertaram padres pedófilos, nomeou um primeiro escalão com quinze novos cardeais, que serão os futuros eleitores de seu sucessor. O próximo papa será escolhido com o anterior ainda em vida, como quis Bento XVI para ele mesmo. Francisco repetiu essa premissa antes de partir em visita a Evo Morales na Bolívia e a Rafael Correa no Equador: ele é contra “líderes vitalícios”.
Seus novos conselheiros foram escolhidos entre aqueles que vivem questões sociais na pele, como em Agrigento, diocese de Lampedusa, a ilha de imigrações clandestinas. Francisco tem procurado seus prelados na Ásia, na Oceania, na África e na América Latina, estabelecendo regras sem escrevê-las: chega de arquidioceses que empurram mecanicamente seus titulares para a alta hierarquia romana, aumentando o peso da Europa no conclave e, em seu seio, o da Itália.6
“Esse papa enfrenta tabus e dá pontapés na fórmula estabelecida, sem tomar as devidas precauções”, constata um diplomata francês, analista da ação pontifical. “Ele entendeu que é um chefe de Estado. A função o tomou completamente. Ele é pragmático e muito político”, continua. Tudo isso repercute na Igreja, porque Francisco “é” a Igreja, como ele mesmo lembrou àqueles que se preocupavam se a instituição o seguiria.
“Ele está sendo muito procurado”, declara um conselheiro pontifical. Em dois anos, mais de cem chefes de Estado foram recebidos no Vaticano. Alguns buscavam mediação de conflitos: Estados Unidos e Cuba, aos quais facilitou a reaproximação; Bolívia e Chile, em função da reivindicação boliviana de acesso ao mar (ver artigo nas págs. 22 a 24). Essas abordagens convergem com os desejos do papa, que gostaria de reabrir em Roma um escritório de mediação pontifical, mesmo sem sucesso garantido: em junho de 2014, reuniu, de forma midiática, o primeiro-ministro palestino, Mahmud Abbas, e o presidente israelense, Shimon Peres, nos jardins do Vaticano – o que não impediu os ataques mortíferos de Israel em Gaza um mês depois.
Nascido na Argentina como Jorge Mario Bergoglio, Francisco “é o primeiro papa que compreende verdadeiramente as mudanças Sul-Sul, seja em relação a bens materiais, simbólicos ou religiosos”, observa Sébastien Fath, membro do Grupo Sociedades, Religiões, Laicidades do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS, na sigla em francês). “Ele sabe que os pregadores africanos estão ligados às Igrejas brasileiras, que os jesuítas indianos partem em missões na África”, completa Fath. “É um latino perfeito... que não fala inglês”, completa Roy, da Caritas. Bergoglio foi garoto nos subúrbios de Buenos Aires e possui sua própria geografia do espaço: menos a do Sul oposto ao Norte que a de um centro antagonista das “periferias”, sejam elas espaciais (países pobres, periferias, favelas) ou existenciais (populações precarizadas, excluídas). Nessa visão, as periferias existem também no Norte, e olhares colonialistas estão espalhados por circuitos globalizados. É isso que Francisco quer que a Igreja trabalhe.
Bergoglio escolheu seu campo de batalha: o da “opção preferencial pelos pobres” e pelos “pequenos”, a quem nomeia claramente em seus discursos, como em Santa Cruz: “catadores de lixo”, “vendedores ambulantes”, “camponeses ameaçados”, “trabalhadores excluídos”, “indígenas oprimidos”, “imigrantes perseguidos”, “pecadores que não resistem às propagandas das grandes corporações”. Francisco é pastor com vínculos missionários fortes, poderia se dizer. Não um diplomata. Isso é um problema? Não, pois para isso existem os diplomatas da Santa Sé, coordenados pelo experiente secretário de estado do Vaticano, Pietro Parolin, antes responsável por missões delicadas na Venezuela, Coreia do Norte, Vietnã e Israel.
O SÍNODO SOBRE A FAMÍLIA
“O papa está convencido de que o futuro repousa sobre aqueles que estão nos territórios, atuando”, reconhece Roy. Ele desconfia de organizações (a começar pela sua!) cujas distorções levam, segundo ele, à esterilidade dos discursos autorreferenciais distantes da realidade. Isso o torna um dirigente de abordagem humana e gerencial em ascendência, constatam os diplomatas, enquanto seus predecessores atuavam de forma vetorial, do topo em direção à base, pela transcendência. “Abençoem-me”, disse Francisco aos fiéis na Praça São Pedro no dia de sua eleição, invertendo os papéis.
Essa proximidade com as populações, que lhe confere traços populistas (na juventude, esteve próximo a um grupo da Juventude Peronista), está fundamentada conceitualmente na teologia do povo, um braço argentino não marxista da teologia da libertação.7 “Uma teologia para o povo, e não pelo povo”, resume Pierre de Charentenay, para marcar a diferença. “O papa opera um tipo de retomada popular e cultural da teologia da libertação.” Trata-se também de uma reabilitação. Oriunda da apropriação latino-americana do Vaticano II nos anos 1970, a teologia da libertação foi desprezada por Bento XVI e João Paulo II por sua abordagem marxista. Em setembro de 2013, Francisco recebeu, em audiência privada em Roma, um de seus ilustres fundadores, o padre peruano Gustavo Gutierrez. Em maio de 2015, beatificou Oscar Romero, o arcebispo de San Salvador assassinado em 1980 por militantes de extrema direita. Seus predecessores nem sequer se deram ao trabalho de abrir uma investigação. De acordo com Leonardo Boff, um dos líderes brasileiros do movimento, a visão de Francisco se inscreve “na grande herança da teologia da libertação”. Seu papado poderia até abrir uma “dinastia de papas do Terceiro Mundo”.8
Bergoglio encarna também o papa administrador: o primeiro a exercer concretamente suas responsabilidades territoriais, extradiocese, em nível regional. De 2005 a 2011, foi presidente da Conferência Episcopal argentina.9 De repente, “as tropas [no Vaticano] estão mais bem organizadas, e sua personalidade e seu envolvimento pessoal dinamizaram a diplomacia da Santa Sé”, constata um observador romano.
Como dirigente, definiu um caminho para sua multinacional. Habilmente, articula o ataque em função de seu alvo. Mundo afora, faz seu projeto ser conhecido como “internacionalismo católico”,10 com objetivos como participar da pacificação das relações entre Estados, promover a democracia, insistir nas estruturas de diálogo internacional, zelar pela justiça entre os povos, estimular o desarmamento, o bem comum internacional – entre outros temas que às vezes conferem à Igreja um ar de ONG. Internamente, aos seus colegas cardeais, o jesuíta enfatizou o essencial: evangelizar. Mas também incentivar que a Igreja saia de si mesma, de seu “narcisismo teológico”, para se dirigir às “periferias”.11
Para evangelizar, porém, Francisco não levanta a cruz como João Paulo II, que, desde seu primeiro sermão, atuou na ofensiva: “Não tenham medo! Abram as portas ao Cristo, abram as fronteiras dos Estados, dos sistemas políticos e econômicos...”.12 O papa argentino tem outro senso político. Não hesita em fazer a Igreja trabalhar junto aos movimentos populares, que estão longe de compartilhar de sua fé. Ele compreendeu que se por um lado a Igreja permanece universal, por outro não é o centro do mundo.
Essas novas inclinações, entretanto, não escondem as dificuldades. Um exemplo é o caso do Oriente Médio. Em 2013, Francisco lançou as atenções da diplomacia do Vaticano sobre a Síria, pedindo paz, enquanto França e Estados Unidos queriam derrubar o regime de Bashar al-Assad. Um ano depois, a Santa Sé precisou recuar e pediu à ONU que “fizesse de tudo” para conter as violências da Organização do Estado Islâmico (OEI), responsável por “uma espécie de genocídio” que obrigava os cristãos ao êxodo.
Da mesma forma, na Ásia, região entendida como uma fonte de desenvolvimento, a diplomacia do Vaticano patina. Se as relações com o Vietnã estão esfriando, na China uma corrente católica controlada pela Associação Patriótica dos Católicos Chineses – cuja estrutura é estatal – continua a escapar do bispado de Roma. Sem dúvida, Francisco se desdobrou para apaziguar o presidente Xi Jinping – notadamente evitando um encontro com o Dalai Lama – e reconheceu um bispado em julho em Anyang (província de Henan), o que não acontecia havia três anos. Mas a realidade está longe dos sonhos missionários: desde o início deste ano, de acordo com os relatórios da agência Igrejas da Ásia, as autoridades chinesas destroem dezenas de cruzes nas igrejas, consideradas muito ostensivas, principalmente na província de Zhejiang. Finalmente, na Índia, a ínfima minoria católica (2,3% da população) é regularmente submetida a atentados.
Para Francisco, contudo, os obstáculos não estão apenas em terras longínquas não cristianizadas. Nos Estados Unidos, onde se apresentará no dia 24 de setembro diante do Congresso, sua popularidade caiu consideravelmente. Em fevereiro, 76% da população tinha opinião favorável em relação ao papa. Em julho, após a publicação da encíclica e do discurso de Santa Cruz, o índice caiu para 59%. A queda foi ainda mais acentuada entre os republicanos (45%).13 O tom é ácido. Francisco é acusado de tropismo latino-americano, de ter pouca consideração com o que capitalismo trouxe aos países mais pobres e de proferir discursos que não propõem soluções.14
À esquerda, suspeita-se de uma ofensiva sedutora para abrir caminhos a pílulas mais amargas – observando, por exemplo, a manutenção da oposição doutrinal à contracepção e a ausência de estímulo ao uso do preservativo como forma de combater a transmissão do vírus HIV. Os conservadores, por sua vez, não aprovam suas atribuições teológicas e morais. “Não sigo a política econômica dos meus bispos, cardeal ou papa”, declarou Jeb Bush, candidato republicano à Casa Branca convertido ao catolicismo há 20 anos.15 O papa não se intimidou: “Não espere deste papa uma receita. A Igreja não tem a pretensão de substituir a política”.
De forma geral, Francisco concentra esforços em questões sociais, pelas quais os órgãos do Vaticano trabalham há dois anos na surdina. Em 2014, abriu uma caixa de Pandora ao pedir aos bispos, reunidos no sínodo, que se dedicassem a uma pesquisa sobre a família. Os trabalhos serão finalizados em outubro deste ano. Em diversas ocasiões, ele mencionou a necessidade de evolução no tema dos divorciados que se casaram novamente e foram privados da comunhão, ou ainda na questão da homossexualidade.
Internamente, Francisco quer romper com o centralismo romano, desenvolver o colegiado, levar às conferências episcopais sua parte de autoridade doutrinal, promover a enculturação da liturgia. Tais ações podem abalar a unidade de sua Igreja. Ora, ele já está com 78 anos. E a Cúria, universo que lhe era desconhecido, opõe grandes resistências. “Ele enfrenta obstáculos. O arado está preso em uma terra difícil”, observa Pierre de Charentenay. Em relação à família, Francisco pede “um milagre”. Quanto ao resto, por enquanto ninguém aposta que esse papa impertinente terá sucesso.
*Jean-Michel Dumay é jornalista
1 O papa retoma aqui uma expressão de um dos pais da Igreja, Basílio de Cesareia, um ascético precursor do cristianismo social.
2 “Naomi Klein prend fait et cause pour l’encyclique du pape” [Naomi Klein apoia encíclica do papa], 2 jul. 2015. Disponível em: ; “Nicolas Hulot: ‘Le pape François sacralise l’enjeu écologique’” [Nicolas Hulot: “O papa Francisco sacraliza o desafio ecológico”], L’Obs, Paris, 25 jun. 2015; “Edgar Morin: ‘L’encyclique Laudato Si’ est peut-être l’acte 1 d’un appel pour une nouvelle civilisation’” [Edgard Morin: “A encíclica Laudato Si’ talvez seja o ato 1 de um chamado a uma nova civilização], La Croix, Paris, 22 jun. 2015.
3 O número de Estados com os quais a Santa Sé mantém relações passou de 49 em 1963 para 84 em 1978. Atualmente, é de 180. Afeganistão, Arábia Saudita, China, Coreia do Norte e Vietnã estão entre os quinze países com os quais o Vaticano não mantém relações.
4 Philippe Chenaux, Paul VI, Éditions du Cerf, Paris, 2015.
5 “Les quinze maux de la curie selon le pape François” [Os quinze males da Cúria de acordo com o papa Francisco], Le Monde, 23 dez. 2014.
6 Dos 114 cardeais eleitores que escolheram Francisco em março de 2013, 55 eram europeus, e 23, italianos.
7 Juan Carlos Scannone, Le Pape du peuple. Bergoglio raconté par son confrère théologien, jésuite et argentin [O papa do povo. Bergoglio contado por seu confrade teólogo, jesuíta e argentino], entrevistas com Bernadette Sauvaget, Éditions du Cerf, 2015.
8 “Mientras viva Ratzinger, no es bueno que Francisco me reciba en Roma” [Enquanto Ratzinger estiver vivo, não é bom que Francisco me receba em Roma], El País, Madri, 23 jul. 2013.
9 Em meio aos jesuítas, foi – entre 1973 e 1978, sob a ditadura de Jorge Rafael Videla – jovem provincial (patrono) da Companhia de Jesus em seu país. Uma polêmica, mal sustentada, acusa-o de falta de firmeza diante do regime.
10 “L’internationalisme catholique”, Les Grands Dossiers de Diplomatie, n.4, Paris, ago.-set. 2011.
11 Intervenção de Jorge Mario Bergoglio diante das congregações gerais antes do conclave que o elegeu papa, no dia 13 de março de 2013. O texto, que deveria permanecer secreto, foi difundido alguns meses depois com o consentimento do sumo pontífice, pelo cardeal Jaime Ortega, arcebispo de Havana.
12 Ler Peter Hebblethwaite, “Le rêve polonais d’une chrétienté restaurée” [O sonho polonês de uma cristandade restaurada], Le Monde diplomatique, maio 1998.
13 Pesquisa Gallup, 22 jul. 2015.
14 “In fiery speeches, Pope renews critiques on excesses of global capitalism” [Em discursos ferozes, papa renova críticas aos excessos do capitalismo global], International New York Times, Paris, 13 jul. 2015.
15 “Jeb Bush joins Republican backlash against Pope on climate change” [Jeb Bush se junta à reação republicana contra o papa na questão da mudança climática], The Guardian, Londres, 17 jun. 2015.
“Precisamos de uma mudança”, proclama o papa Francisco três dias antes de incitar os jovens paraguaios a “desafiar a ordem”. Em 2013 no Brasil, pediu às pessoas que atuassem como “revolucionárias” e se posicionassem “contra a corrente”. Em suas viagens, o bispo de Roma profere um discurso cada vez mais virulento sobre o estado do mundo, sua degradação ambiental e social, e usa expressões fortes contra o neoliberalismo, o tecnocentrismo e um sistema econômico de efeitos nefastos: uniformização de culturas e “globalização da indiferença”.
Em junho, nessa mesma linha, Francisco dirigiu à comunidade internacional um “convite urgente para um novo diálogo, o diálogo pelo qual construiremos o futuro do planeta”. Nessa encíclica sobre a ecologia, chamada Laudato si’ (“Louvado seja”), chama cada um, fiel ou não, para uma revolução de comportamentos e denuncia um “sistema de relações comerciais e de propriedade estruturalmente perverso”.
O pontífice assegura que outro mundo é possível, não no Juízo Final, mas aqui embaixo e agora. O papa celebridade, na linha midiática de João Paulo II (1978-2005), fragmenta e divide: por um lado é canonizado por figuras da ecologia e altermundialistas (Naomi Klein, Nicolas Hulot, Edgar Morin) por “sacralizar o desafio ecológico” em um “deserto do pensamento”;2 por outro, demonizado pelos ultraliberais e pelos céticos em relação à questão climática, capazes de descrevê-lo como “a pessoa mais perigosa do mundo” – como o caricaturou um polemista do canal ultraconservador norte-americano Fox News.
As direitas cristãs se inquietam ao ver um papa de discurso esquerdista e reticente sobre o aborto. E os editorialistas da esquerda laica se perguntam sobre a profundidade revolucionária desse homem do Sul, primeiro papa não europeu desde o sírio Gregório III (731-741), que se escandaliza diante do tráfico de imigrantes, pede apoio aos gregos e rejeita o plano de austeridade, nomeia um genocídio (dos armênios) de “genocídio”, assina um quase acordo com o Estado palestino, apoia sua testa em oração no Muro das Lamentações contra a separação que os israelenses impõem aos palestinos e se aproxima de Vladimir Putin sobre a questão síria quando a tendência, entre os ocidentais, é sancionar a Rússia pelo conflito ucraniano.
“Ele colocou a Igreja novamente no cenário internacional”, analisa Pierre de Charentenay, especialista em Relações Internacionais na revista jesuíta romana Civiltà Cattolica. “E mudou a aparência da instituição. Ele é o campeão do altermundialismo e questiona o conjunto do sistema.”
Precisamente, o que diz o primeiro papa jesuíta e sul-americano é o seguinte: a humanidade carrega a responsabilidade pela degradação planetária e deixa o sistema capitalista neoliberal destruir o planeta, “nossa casa comum”, semeando desigualdade. A humanidade precisa romper com uma economia – como diz o economista, e também jesuíta, Gaël Giraud – “que desde Adam Smith e David Ricardo exclui a questão ética, impondo a ficção da mão invisível” que deveria regular o mercado. Essa mão precisa, atualmente, de uma “autoridade mundial”, de normas restritivas e, sobretudo, da inteligência dos povos a serviço de quem é urgente redirecionar a economia. Porque a solução, política, está em suas mãos, e não nas mãos das elites, acometidas pela “miopia das lógicas de poder”.
Para o papa, a crise ambiental é, antes, moral, fruto de uma economia desligada do ser humano, na qual as dívidas se acumulam: entre ricos e pobres, Norte e Sul, jovens e velhos. E na qual “tudo está conectado”: pobreza-exclusão e cultura do desperdício, ditadura do curto prazo e alienação consumista, aquecimento global e congelamento de corações. Dessa forma, “uma abordagem ecológica verdadeira sempre se transformará em abordagem social”. Convocada a se repensar, a humanidade precisa buscar uma “nova ética nas relações internacionais” e uma “solidariedade universal” – é o que pedirá Francisco na Assembleia Geral da ONU no dia 25 de setembro, no lançamento dos Objetivos do Milênio para o Desenvolvimento.
Sem dúvida, nada disso é novo. “Francisco se insere como uma bonita continuidade na linha do Concílio do Vaticano II [aquele ocorrido entre 1962 e 1965, cujo objetivo era abrir a Igreja ao mundo moderno]”, constata Michel Roy, secretário-geral da rede humanitária Caritas Internacional. Assim, o pontífice revisita a doutrina social da Igreja elaborada na era industrial e alinha suas convicções às de Paulo VI (1963-1978), primeiro papa das grandes viagens intercontinentais. Depois da reforma de João XXIII (1958-1963), foi ele quem fisicamente saiu primeiro do papado da Itália, internacionalizou o colégio dos cardeais, multiplicou as nunciaturas (embaixadas da Santa Sé) e as relações bilaterais com os Estados.3 Também foi Paulo VI quem levou a Igreja para além de suas competências restritas de guardiã das liberdades religiosas e tornou-a “solidária com as angústias e penas de toda a humanidade”.4 Para ele, desenvolvimento era o novo nome da paz; uma paz entendida não como um estado, mas como o processo dinâmico de uma sociedade mais humana pelo compartilhamento da riqueza.
Contudo, se por um lado existe essa continuidade – para alguns, inclusive, ela representa o ápice da aposta católica empreendida nos anos 1960 –, por outro é difícil ignorar que o pontífice argentino vai além de seus predecessores. Apesar de o polonês João Paulo II e o alemão Bento XVI não economizarem no discurso antiliberal, eles ficaram marcados pelo rigor doutrinal. O último foi acometido também por alguns “contratempos” que a administração do Vaticano teve certa dificuldade em contornar, como o caso VatiLeaks: a difusão de documentos confidenciais que acusavam a Santa Sé de corrupção e favorecimento ilícito, notadamente em contratos assinados com empresas italianas.
Há duas opiniões sobre as razões da renovação atual: uma delas defende que se trata do contexto, e a outra, de que se devem a características inerentes ao homem. “No plano ético-político, Francisco preenche um vazio em nível internacional”, constata François Mabille, professor de Ciência Política na Federação Universitária e Politécnica de Lille e especialista em diplomacia pontifical. Ele é o papa pós-crise financeira de 2008, como João Paulo II foi o do fim do comunismo. “Ao realizar um aggiornamento da doutrina social, Francisco introduz o pensamento sistêmico na Igreja, segundo o qual todos os fatores sociais estão relacionados. Além disso, ocupa com sucesso o lugar da reivindicação de protesto”, analisa Mabille. E acrescenta: “Ele tem senso de urgência. O tempo da Igreja já não era o tempo do mundo. Tudo ia muito rápido para Bento XVI. Francisco sentiu a necessidade de a Igreja estar no passo da emancipação, e não mais da reação”.
Antes de ganhar o mundo, contudo, Francisco estremeceu a própria casa. Adepto de uma sobriedade que compartilha com Francisco de Assis, de quem emprestou o nome, instaurou um papado preocupado com o exemplo. Renunciou a atributos de vestimentas e hábitos honoríficos e foi viver em um quarto e sala de 70 m², em vez dos luxuosos apartamentos pontificais. O papa deseja atingir o campo simbólico e, para isso, não se restringe à palavra: empreende gestos concretos – o que tem seu peso em uma sociedade pautada pela imagem.
Dessa forma, como um bom samaritano, aparece sempre direto, espontâneo, cara a cara. Designado por seus pares para reformar em profundidade a Cúria, ou seja, o aparelho estatal da Santa Sé, Francisco fez uma lista de quinze males que acometem a instituição, marcada por um clientelismo à moda italiana. Entre os itens, o “Alzheimer espiritual” e, em primeiro lugar, o hábito de “acreditar-se indispensável”.5
TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO NÃO MARXISTA
Para governar, o papa se cercou de uma guarda próxima com oito cardeais. Criou comissões para reformar as finanças e a comunicação, multiplicou as instalações de especialistas laicos para aconselhar sua administração, criou um tribunal no Vaticano para julgar bispos que acobertaram padres pedófilos, nomeou um primeiro escalão com quinze novos cardeais, que serão os futuros eleitores de seu sucessor. O próximo papa será escolhido com o anterior ainda em vida, como quis Bento XVI para ele mesmo. Francisco repetiu essa premissa antes de partir em visita a Evo Morales na Bolívia e a Rafael Correa no Equador: ele é contra “líderes vitalícios”.
Seus novos conselheiros foram escolhidos entre aqueles que vivem questões sociais na pele, como em Agrigento, diocese de Lampedusa, a ilha de imigrações clandestinas. Francisco tem procurado seus prelados na Ásia, na Oceania, na África e na América Latina, estabelecendo regras sem escrevê-las: chega de arquidioceses que empurram mecanicamente seus titulares para a alta hierarquia romana, aumentando o peso da Europa no conclave e, em seu seio, o da Itália.6
“Esse papa enfrenta tabus e dá pontapés na fórmula estabelecida, sem tomar as devidas precauções”, constata um diplomata francês, analista da ação pontifical. “Ele entendeu que é um chefe de Estado. A função o tomou completamente. Ele é pragmático e muito político”, continua. Tudo isso repercute na Igreja, porque Francisco “é” a Igreja, como ele mesmo lembrou àqueles que se preocupavam se a instituição o seguiria.
“Ele está sendo muito procurado”, declara um conselheiro pontifical. Em dois anos, mais de cem chefes de Estado foram recebidos no Vaticano. Alguns buscavam mediação de conflitos: Estados Unidos e Cuba, aos quais facilitou a reaproximação; Bolívia e Chile, em função da reivindicação boliviana de acesso ao mar (ver artigo nas págs. 22 a 24). Essas abordagens convergem com os desejos do papa, que gostaria de reabrir em Roma um escritório de mediação pontifical, mesmo sem sucesso garantido: em junho de 2014, reuniu, de forma midiática, o primeiro-ministro palestino, Mahmud Abbas, e o presidente israelense, Shimon Peres, nos jardins do Vaticano – o que não impediu os ataques mortíferos de Israel em Gaza um mês depois.
Nascido na Argentina como Jorge Mario Bergoglio, Francisco “é o primeiro papa que compreende verdadeiramente as mudanças Sul-Sul, seja em relação a bens materiais, simbólicos ou religiosos”, observa Sébastien Fath, membro do Grupo Sociedades, Religiões, Laicidades do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS, na sigla em francês). “Ele sabe que os pregadores africanos estão ligados às Igrejas brasileiras, que os jesuítas indianos partem em missões na África”, completa Fath. “É um latino perfeito... que não fala inglês”, completa Roy, da Caritas. Bergoglio foi garoto nos subúrbios de Buenos Aires e possui sua própria geografia do espaço: menos a do Sul oposto ao Norte que a de um centro antagonista das “periferias”, sejam elas espaciais (países pobres, periferias, favelas) ou existenciais (populações precarizadas, excluídas). Nessa visão, as periferias existem também no Norte, e olhares colonialistas estão espalhados por circuitos globalizados. É isso que Francisco quer que a Igreja trabalhe.
Bergoglio escolheu seu campo de batalha: o da “opção preferencial pelos pobres” e pelos “pequenos”, a quem nomeia claramente em seus discursos, como em Santa Cruz: “catadores de lixo”, “vendedores ambulantes”, “camponeses ameaçados”, “trabalhadores excluídos”, “indígenas oprimidos”, “imigrantes perseguidos”, “pecadores que não resistem às propagandas das grandes corporações”. Francisco é pastor com vínculos missionários fortes, poderia se dizer. Não um diplomata. Isso é um problema? Não, pois para isso existem os diplomatas da Santa Sé, coordenados pelo experiente secretário de estado do Vaticano, Pietro Parolin, antes responsável por missões delicadas na Venezuela, Coreia do Norte, Vietnã e Israel.
O SÍNODO SOBRE A FAMÍLIA
“O papa está convencido de que o futuro repousa sobre aqueles que estão nos territórios, atuando”, reconhece Roy. Ele desconfia de organizações (a começar pela sua!) cujas distorções levam, segundo ele, à esterilidade dos discursos autorreferenciais distantes da realidade. Isso o torna um dirigente de abordagem humana e gerencial em ascendência, constatam os diplomatas, enquanto seus predecessores atuavam de forma vetorial, do topo em direção à base, pela transcendência. “Abençoem-me”, disse Francisco aos fiéis na Praça São Pedro no dia de sua eleição, invertendo os papéis.
Essa proximidade com as populações, que lhe confere traços populistas (na juventude, esteve próximo a um grupo da Juventude Peronista), está fundamentada conceitualmente na teologia do povo, um braço argentino não marxista da teologia da libertação.7 “Uma teologia para o povo, e não pelo povo”, resume Pierre de Charentenay, para marcar a diferença. “O papa opera um tipo de retomada popular e cultural da teologia da libertação.” Trata-se também de uma reabilitação. Oriunda da apropriação latino-americana do Vaticano II nos anos 1970, a teologia da libertação foi desprezada por Bento XVI e João Paulo II por sua abordagem marxista. Em setembro de 2013, Francisco recebeu, em audiência privada em Roma, um de seus ilustres fundadores, o padre peruano Gustavo Gutierrez. Em maio de 2015, beatificou Oscar Romero, o arcebispo de San Salvador assassinado em 1980 por militantes de extrema direita. Seus predecessores nem sequer se deram ao trabalho de abrir uma investigação. De acordo com Leonardo Boff, um dos líderes brasileiros do movimento, a visão de Francisco se inscreve “na grande herança da teologia da libertação”. Seu papado poderia até abrir uma “dinastia de papas do Terceiro Mundo”.8
Bergoglio encarna também o papa administrador: o primeiro a exercer concretamente suas responsabilidades territoriais, extradiocese, em nível regional. De 2005 a 2011, foi presidente da Conferência Episcopal argentina.9 De repente, “as tropas [no Vaticano] estão mais bem organizadas, e sua personalidade e seu envolvimento pessoal dinamizaram a diplomacia da Santa Sé”, constata um observador romano.
Como dirigente, definiu um caminho para sua multinacional. Habilmente, articula o ataque em função de seu alvo. Mundo afora, faz seu projeto ser conhecido como “internacionalismo católico”,10 com objetivos como participar da pacificação das relações entre Estados, promover a democracia, insistir nas estruturas de diálogo internacional, zelar pela justiça entre os povos, estimular o desarmamento, o bem comum internacional – entre outros temas que às vezes conferem à Igreja um ar de ONG. Internamente, aos seus colegas cardeais, o jesuíta enfatizou o essencial: evangelizar. Mas também incentivar que a Igreja saia de si mesma, de seu “narcisismo teológico”, para se dirigir às “periferias”.11
Para evangelizar, porém, Francisco não levanta a cruz como João Paulo II, que, desde seu primeiro sermão, atuou na ofensiva: “Não tenham medo! Abram as portas ao Cristo, abram as fronteiras dos Estados, dos sistemas políticos e econômicos...”.12 O papa argentino tem outro senso político. Não hesita em fazer a Igreja trabalhar junto aos movimentos populares, que estão longe de compartilhar de sua fé. Ele compreendeu que se por um lado a Igreja permanece universal, por outro não é o centro do mundo.
Essas novas inclinações, entretanto, não escondem as dificuldades. Um exemplo é o caso do Oriente Médio. Em 2013, Francisco lançou as atenções da diplomacia do Vaticano sobre a Síria, pedindo paz, enquanto França e Estados Unidos queriam derrubar o regime de Bashar al-Assad. Um ano depois, a Santa Sé precisou recuar e pediu à ONU que “fizesse de tudo” para conter as violências da Organização do Estado Islâmico (OEI), responsável por “uma espécie de genocídio” que obrigava os cristãos ao êxodo.
Da mesma forma, na Ásia, região entendida como uma fonte de desenvolvimento, a diplomacia do Vaticano patina. Se as relações com o Vietnã estão esfriando, na China uma corrente católica controlada pela Associação Patriótica dos Católicos Chineses – cuja estrutura é estatal – continua a escapar do bispado de Roma. Sem dúvida, Francisco se desdobrou para apaziguar o presidente Xi Jinping – notadamente evitando um encontro com o Dalai Lama – e reconheceu um bispado em julho em Anyang (província de Henan), o que não acontecia havia três anos. Mas a realidade está longe dos sonhos missionários: desde o início deste ano, de acordo com os relatórios da agência Igrejas da Ásia, as autoridades chinesas destroem dezenas de cruzes nas igrejas, consideradas muito ostensivas, principalmente na província de Zhejiang. Finalmente, na Índia, a ínfima minoria católica (2,3% da população) é regularmente submetida a atentados.
Para Francisco, contudo, os obstáculos não estão apenas em terras longínquas não cristianizadas. Nos Estados Unidos, onde se apresentará no dia 24 de setembro diante do Congresso, sua popularidade caiu consideravelmente. Em fevereiro, 76% da população tinha opinião favorável em relação ao papa. Em julho, após a publicação da encíclica e do discurso de Santa Cruz, o índice caiu para 59%. A queda foi ainda mais acentuada entre os republicanos (45%).13 O tom é ácido. Francisco é acusado de tropismo latino-americano, de ter pouca consideração com o que capitalismo trouxe aos países mais pobres e de proferir discursos que não propõem soluções.14
À esquerda, suspeita-se de uma ofensiva sedutora para abrir caminhos a pílulas mais amargas – observando, por exemplo, a manutenção da oposição doutrinal à contracepção e a ausência de estímulo ao uso do preservativo como forma de combater a transmissão do vírus HIV. Os conservadores, por sua vez, não aprovam suas atribuições teológicas e morais. “Não sigo a política econômica dos meus bispos, cardeal ou papa”, declarou Jeb Bush, candidato republicano à Casa Branca convertido ao catolicismo há 20 anos.15 O papa não se intimidou: “Não espere deste papa uma receita. A Igreja não tem a pretensão de substituir a política”.
De forma geral, Francisco concentra esforços em questões sociais, pelas quais os órgãos do Vaticano trabalham há dois anos na surdina. Em 2014, abriu uma caixa de Pandora ao pedir aos bispos, reunidos no sínodo, que se dedicassem a uma pesquisa sobre a família. Os trabalhos serão finalizados em outubro deste ano. Em diversas ocasiões, ele mencionou a necessidade de evolução no tema dos divorciados que se casaram novamente e foram privados da comunhão, ou ainda na questão da homossexualidade.
Internamente, Francisco quer romper com o centralismo romano, desenvolver o colegiado, levar às conferências episcopais sua parte de autoridade doutrinal, promover a enculturação da liturgia. Tais ações podem abalar a unidade de sua Igreja. Ora, ele já está com 78 anos. E a Cúria, universo que lhe era desconhecido, opõe grandes resistências. “Ele enfrenta obstáculos. O arado está preso em uma terra difícil”, observa Pierre de Charentenay. Em relação à família, Francisco pede “um milagre”. Quanto ao resto, por enquanto ninguém aposta que esse papa impertinente terá sucesso.
*Jean-Michel Dumay é jornalista
1 O papa retoma aqui uma expressão de um dos pais da Igreja, Basílio de Cesareia, um ascético precursor do cristianismo social.
2 “Naomi Klein prend fait et cause pour l’encyclique du pape” [Naomi Klein apoia encíclica do papa], 2 jul. 2015. Disponível em: ; “Nicolas Hulot: ‘Le pape François sacralise l’enjeu écologique’” [Nicolas Hulot: “O papa Francisco sacraliza o desafio ecológico”], L’Obs, Paris, 25 jun. 2015; “Edgar Morin: ‘L’encyclique Laudato Si’ est peut-être l’acte 1 d’un appel pour une nouvelle civilisation’” [Edgard Morin: “A encíclica Laudato Si’ talvez seja o ato 1 de um chamado a uma nova civilização], La Croix, Paris, 22 jun. 2015.
3 O número de Estados com os quais a Santa Sé mantém relações passou de 49 em 1963 para 84 em 1978. Atualmente, é de 180. Afeganistão, Arábia Saudita, China, Coreia do Norte e Vietnã estão entre os quinze países com os quais o Vaticano não mantém relações.
4 Philippe Chenaux, Paul VI, Éditions du Cerf, Paris, 2015.
5 “Les quinze maux de la curie selon le pape François” [Os quinze males da Cúria de acordo com o papa Francisco], Le Monde, 23 dez. 2014.
6 Dos 114 cardeais eleitores que escolheram Francisco em março de 2013, 55 eram europeus, e 23, italianos.
7 Juan Carlos Scannone, Le Pape du peuple. Bergoglio raconté par son confrère théologien, jésuite et argentin [O papa do povo. Bergoglio contado por seu confrade teólogo, jesuíta e argentino], entrevistas com Bernadette Sauvaget, Éditions du Cerf, 2015.
8 “Mientras viva Ratzinger, no es bueno que Francisco me reciba en Roma” [Enquanto Ratzinger estiver vivo, não é bom que Francisco me receba em Roma], El País, Madri, 23 jul. 2013.
9 Em meio aos jesuítas, foi – entre 1973 e 1978, sob a ditadura de Jorge Rafael Videla – jovem provincial (patrono) da Companhia de Jesus em seu país. Uma polêmica, mal sustentada, acusa-o de falta de firmeza diante do regime.
10 “L’internationalisme catholique”, Les Grands Dossiers de Diplomatie, n.4, Paris, ago.-set. 2011.
11 Intervenção de Jorge Mario Bergoglio diante das congregações gerais antes do conclave que o elegeu papa, no dia 13 de março de 2013. O texto, que deveria permanecer secreto, foi difundido alguns meses depois com o consentimento do sumo pontífice, pelo cardeal Jaime Ortega, arcebispo de Havana.
12 Ler Peter Hebblethwaite, “Le rêve polonais d’une chrétienté restaurée” [O sonho polonês de uma cristandade restaurada], Le Monde diplomatique, maio 1998.
13 Pesquisa Gallup, 22 jul. 2015.
14 “In fiery speeches, Pope renews critiques on excesses of global capitalism” [Em discursos ferozes, papa renova críticas aos excessos do capitalismo global], International New York Times, Paris, 13 jul. 2015.
15 “Jeb Bush joins Republican backlash against Pope on climate change” [Jeb Bush se junta à reação republicana contra o papa na questão da mudança climática], The Guardian, Londres, 17 jun. 2015.
sexta-feira, 25 de setembro de 2015
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terça-feira, 22 de setembro de 2015
A educação é um dos serviços mais lucrativos, afirma Gaudêncio Frigotto
Por Iris Pacheco
Durante os dias 21 a 25 de setembro, cerca de 1200 educadores e educadoras do campo se reunirão no município de Luziânia, em Goiás, para o 2° Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária (Enera).
O encontro tem como objetivo debater o atual momento da educação pública brasileira, cada vez mais submetida a uma lógica mercantilizada ditada por grandes grupos financeiros.
Em entrevista à Página do MST, o professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Gaudêncio Frigotto, fala sobre o crescente processo de mercantilização da educação no Brasil e sobre o projeto de educação a ser defendido para o país.
Para o professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da UERJ, vivemos num período de crise em que o capital não se contenta em apenas ganhar dinheiro fácil com a educação, mas necessita enquadrar professores e alunos na lógica da mercadoria.
Diante deste cenário, Frigotto ressalta que o Estado está domado por dentro pelo interesse do mercado, especialmente o setor financeiro, e que o projeto de educação a ser defendido é o que vem do acúmulo da luta da classe trabalhadora do campo e da cidade.
“Trata-se de uma educação integral que forneça as bases da ciência, da cultura e do trabalho e que permita desenvolver sujeitos autônomos e militantes na superação das relações sociais de exploração e de opressão”, acredita o professor.
Como a atual crise econômica é refletida no campo da educação?
A análise do processo histórico nos mostra que o capital é uma relação social que se constitui mediante a exploração do trabalhador do campo e da cidade, que é essencialmente destrutiva sobre todas as esferas da vida como resposta às crises que lhe são organicamente inerentes e cada vez mais profundas.
Como demonstra o filósofo István Meszaros, a crise atual do sistema capitalista assume quatro características: a) o seu caráter é universal, afeta todas as esferas da sociedade (crise financeira, da política, da educação, da ética, etc.); b) não se localiza mais numa nação ou região como no passado, mas é global no sentido literal do termo; c) sua escala no tempo é extensa e contínua ou permanente, não mais cíclica como as precedentes que se deram ao longo dos Séculos 19 e 20; d) e, finalmente, a sua forma de desdobramento é gradual, podendo, todavia, assumir dimensão de convulsões abruptas.
Como uma crise contínua e mais profunda sua forma destrutiva de direitos (saúde, educação, trabalho, cultura) e das bases da vida (a terra, a água, os alimentos, o ar, etc.) também é continua.
No campo da educação isto se expressa mediante sua crescente mercantilização num duplo sentido. A educação tem se tornado um dos serviços mercantis mais lucrativos e de forma rápida. O Brasil tem atualmente um dos dois maiores empreendimentos empresariais do campo educacional do mundo. O grupo “brasileiro” Kroton - Anhanguera concorre com a empresa educacional chinesa New Oriental na lista do maior do mundo, ambas com capital aberto nas bolsas de valores.
Como essa relação entra para dentro da sala de aula?
O capital não se interessa apenas em ganhar dinheiro fácil com a educação. Para isso tem que enquadrar professores e alunos na lógica da mercadoria. No caso do professor, os efeitos perversos são de três ordens: perda da autonomia docente ou sequestro de exercer sua função de organizar e efetivar o processo de ensino; intensificação e exploração de seu trabalho, e aumento de doenças de caráter psicofísicas, mormente do stress.
No caso do aluno deixa de ser sujeito e, portanto das particularidades de classe ou grupo social, cultura etc. e é tratado como mercadoria. O mesmo pacote de conteúdos e o mesmo método é aplicado como se o aluno fosse similar à produção de uma garrafa ou um sapato.
O lema "Pátria educadora" foi a maior bandeira do começo do governo Dilma nesse mandato, porém a educação foi a área mais afetada pelos ajustes fiscais, o MEC teve um corte de R$ 20 bilhões em seu orçamento. Como você analisa esse cenário?
Os corte vultoso das verbas da educação expressam duas coisas: o Estado está domado por dentro pelo interesse do mercado, por outro o governo em escala gradativa, desde o segundo ano do governo Lula, não só não privilegiou as teses de educação que são do interesse da classe trabalhadora, mas sequer abriu espaços para que o contraditório pudesse se estabelecer.
Neste momento o governo não tem força para contrapor-se à ilimitada ganância do capital, sobretudo o financeiro na negociação dos cortes, e não tem base social para defendê-lo. Sua defesa, por setores dos movimentos sociais e populares e intelectuais a eles vinculados, mantém-se por manter as regras da frágil democracia brasileira e porque, como disse, num outro contexto, o sociólogo Francisco de Oliveira – o outro lado é muito pior.
Os lemas “Pátria educadora” e “Todos pela educação” trazem em si uma ideia positiva, porém na prática cinicamente ambos traduzem a educação que convêm ao capital. O “Todos pela educação” é hegemonizado por grandes grupos de empresários que disputam, no seio do Estado brasileiro, os recursos do fundo público para seus empreendimentos e também a direção da concepção da educação. Institutos ligados a bancos, grupos da grande mídia, associações de grupos empresariais como a Associação Brasileira do Agro Negócio (ABAG) produzem cartilhas e coordenam participam das gestões municipais e estaduais da educação básica públic
A encomenda para elaborar o que será a concepção da Pátria educadora ao Ministro de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, significou entregar a um competente intelectual que se pauta pelos interesses do mundo empresarial na educação. É espantoso, mas compreensível dentro da visão mercantil, que todo o acúmulo de produção científica no campo da educação e das pautas elaboradas pelas associações científicas e movimentos sociais seja totalmente ignorado.
O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), por exemplo, com todos os seus limites, expressa um denso acúmulo de debate e de experiências da educação do campo. Por ser uma elaboração que se articula às lutas mais amplas travadas na mudança das relações sociais de uma das sociedades mais desiguais e violentas do mundo, é ai que encontramos a teoria e a prática pedagógica atualmente no Brasil.
Como o mercado da educação técnica e profissional, como o Pronatec, tem atuado?
Um olhar histórico que relacione o projeto societário que a burguesia brasileira mantém mediante ditaduras e golpes nos mostram que para este projeto não há necessidade da educação pública básica, universal e gratuita, laica e unitária. Basta ver as estatísticas oficiais expressas pelo IBGE na Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (Pnad 2012).
O Brasil continua com mais de 13 milhões de analfabetos absolutos e aproximadamente 50% dos jovens em idade de fazer o ensino médio estão fora da escola, sendo que, mais de 9 milhões de jovens entre 15 e 24 anos, equivalente a três populações do Uruguai, são denominados de geração nem-nem. Vale dizer, que não estudam e nem trabalham. Na verdade fazem alguma coisa e em grande parte, por condições de sobrevivência, atuam no setor informal do ilícito e do crime. Além disso, 62% da população ativa com mais de 15 anos tem apenas 4 anos de escolaridade.
A esta negação sistemática o que tem se oferecido é políticas e programas na lógica e na medida das demandas do mercado. No inicio da década de 1940, por indução do Estado, foi criado o Sistema S, gerido pelos empresários, mas com um fundo público compulsório
No início da década de 1960, antes do golpe empresarial militar, no governo João Goulart, criou-se o Programa Intensivo de Preparação de Mão de Obra (PIPMO) para durar dez meses e só acabou, na realidade, no final da ditadura, depois de 19 anos. Na década de 1990 criou-se o Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador (PlANFLOR). Finalmente, na mesma lógica, criou-se o Plano Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC).
Todos estes programas oferecidos a jovens e adultos, que se tivessem tido o direito a uma educação básica de ensino médio de qualidade, seriam programas importantes para acompanhar de forma crítica as mudanças que se processam nos processos de produção com o avanço da ciência e das técnicas.
O Pronatec, assim, no geral é mais uma fonte de transferência de fundo público ao sistema S e a empresas que fazem da educação um negócio, sem controle da sociedade e do Estado. Os dados sobre isto são inequívocos e as exceções não suprime a regra.
Os efeitos para a classe trabalhadora são perversos. Nega-se a educação básica e sem esta se lhes oferece a ilusão de que pelo adestramento instrumental poderão os desempregados ter emprego. Quando isso ocorre, será o trabalho simples. E quando perder o emprego terá que buscar outro adestramento para ver se encaixa no mercado de trabalho. Em síntese, pela negação da educação básica, a possibilidade de passaporte da autonomia e cidadania política e econômica pela instrução instrumental.
Que projeto de educação deve ser defendido para o Brasil?
O projeto de educação a ser defendido é aquele que vem do acúmulo das lutas da classe trabalhadora e dos movimentos sociais do campo e da cidade desde o início do Século 20. No final da década de 40 até a ditadura civil militar de 1964 formulou-se lutas de mudanças estruturais onde a educação e a cultura tiveram destaque central.
A obra Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, expressa a síntese deste tempo. Uma educação que ajudasse aos jovens e adultos a uma leitura crítica da realidade, não para reproduzir as relações sociais que mantém o latifúndio e produzem a miséria urbana e do campo, mas para transformá-las.
O desenvolvimento deste legado tem sido construído ao longo destas últimas décadas pela pedagogia da educação do campo, e não da educação para o campo ou no campo. Também se desenvolveu em alguns espaços das universidades públicas, mormente com grupos que se vinculam às lutas populares da cidade e do campo.
Trata-se de uma educação integral e que forneça as bases da ciência, da cultura e do trabalho que permitam desenvolver sujeitos autônomos e militantes na superação das relações sociais de exploração e de opressão.
A base material para esta educação inicia na formação dos educadores cuja condição não é apenas uma formação teórica, que é imprescindível, mas também um vínculo orgânico com as lutas da classe trabalhadora do campo e da cidade.
Sob esta formação um espaço escolar onde haja ambiente formativo, cuja condição é que o educador atue numa só escola, com tempo de sala de aula dividido com tempo de estudo e orientação dos alunos, laboratórios, espaço para esportes e arte, etc.
Esta condição, longe de ser uma realidade, depende da luta permanente das organizações da classe trabalhadora. Luta que implica o avanço também nas conquistas de melhorias da produção da vida de crianças e jovens, filhos dos trabalhadores do campo e da cidade.
Nos últimos anos tem aumentado o conjunto de mobilizações dos diversos setores da educação. Qual seria o maior desafio dessa esfera no processo de articulação de suas lutas, incluindo a unidade entre campo e cidade?
A agenda da Reforma Agrária Popular engendra o sentido e a direção de temas cruciais da necessária unidade das lutas dos trabalhadores do campo da cidade contra o projeto do capital.
Ao colocar o problema de qual alimento o mundo quer comer, sinaliza uma luta que pode agregar forças, mesmo que não ainda não vejam que a luta maior é contra o sistema capitalista, para mostrar os efeitos devastadores sobre a saúde, a água, o ar e a terra da produção destrutiva do agronegócio.
Também pode ajudar a grandes massas a tomarem consciência de que a violência nas grandes e médias cidades tem como uma de suas determinações a expulsão de milhões de famílias do campo, onde poderiam produzir sua subsistência com qualidade por meio de um projeto de reforma agrária acompanhado de uma política de incentivo à agroecologia para o campo. Certamente, como sinaliza Antônio Gramsci, uma grande quantidade de pequenas e médias propriedades geraria um excedente com uma nova qualidade de alimentos.
Penso que um dos grandes desafios é a esquerda fazer uma autocrítica, não para anular as diferenças de posições, mas para que as mesmas sejam menos abstratas e doutrinárias e se pautem sobre agendas que concretas que podem ampliar as conquistas da classe trabalhadora do campo e da cidade.
Creio que a aguda a observação feita pelo filósofo Leandro Konder, em 1979, ao voltar do exílio, sobre o comportamento da direita no Brasil é, contraditória e paradoxalmente, uma lição a aprender pela esquerda se quiser confrontar com chances esta mesma direita do campo e da cidade.
O desafio maior, então, para os movimentos sociais do campo e da cidade e das correntes de pensamento de esquerda, que deles fazem parte os intelectuais que se vinculam a esses movimentos, é definir o que nos exige uma “unidade substancial, profunda e inabalável” para enfrentar o projeto da prepotente classe dominante brasileira. Trata-se de uma agenda concreta e não abstrata, e cujo conteúdo é antagônico ao que é substancial, profundo e inabalável para a classe detentora do capital no Brasil.
Na conjuntura crítica que nos encontramos esta unidade é condição para que o futuro no tempo breve e longo não agrave ainda mais a situação de retrocessos nas conquistas democráticas, e nos avanços duramente conquistados em pequenas e grandes batalhas ao longo das últimas décadas.
O Papa que dá à crise o seu nome
por: Saul Leblon
Uma das características que impressionam no Papa, pelo ineditismo em relação à norma dominante, é a sensação de que ele está sempre chegando.
Francisco é o dado novo na mesa rasa, previsível, da policrise do nosso tempo, ao mesmo tempo uma crise do capitalismo e da civilização, cujo vórtice ambiental ameaça a própria sobrevivência da humanidade.
É disso que ele trata em sua primeira encíclica ‘Laudato si’.
E o faz de forma desabrida, como nas suas primeiras declarações ao chegar em Cuba, neste sábado (leia a cobertura de Carta Maior nesta pág; direto de Havana).
Poucos minutos depois de seu desembarque, como o terceiro papa a pisar em solo cubano, mas o primeiro a abraçar a luta pelo fim do embargo norte-americano, disparou: ‘O mundo vive uma terceira guerra mundial por etapas. Precisamos de conciliação’.
A conciliação que ele tem pleiteado é aquela baseada na maior igualdade, na menor obsessão consumista, no fim do fetiche do dinheiro, no resgate dos excluídos, na repartição da riqueza, na reconciliação entre as formas de viver e de produzir e a natureza.
O nome da crise é capitalismo turbinado, diz o idioma religioso de Francisco.
Em outubro de 2014, ele promoveu um Encontro Mundial de Movimentos Populares nas dependências do Vaticano.
O desassombro não ficou na forma.
Ao falar aos participantes, entre eles o líder do MST, João Pedro Stédile, que saiu convencido de que o Papa estava à esquerda dos presentes, resumiu o que entende por conciliação e reconciliação: ‘Nenhuma família sem teto; nenhum agricultor sem terra; nenhum ser humano sem pão’.
Mas foi além.
Como se fora uma espécie de Polanyi de batina, criticou o comércio dos recursos essenciais: o solo e a água, por exemplo,
O filósofo e economista húngaro Karl Polanyi (1886/1964) autor de ‘A grande transformação’, advertiu pioneiramente para esse risco.
Elementos essenciais ao equilíbrio da vida e à construção do bem comum, como o trabalho, a terra --e também o dinheiro, disse Polanyi, filho de húngaros, nascido em Viena, não deveriam ser submetidos a um liberalismo subordinado à cobiça do interesse privado.
As evidências do nosso tempo mostram que ele tinha razão.
Nesse mundo onde tudo o que é rentável deve ser desregulado, para a livre mastigação dos mercados, os recursos que formam as bases da vida na terra, e o ‘recurso’ humano, encontram-se ameaçados pela inconciliável relação entre o capitalismo, a temperança e o equilíbrio ambiental.
Há dois anos e meio do seu Papado, iniciado em março de 2013, Francisco parece que acabou de entrar na sala.
É a visita que a qualquer momento pode trazer novidades.
Não é truque, nem miragem.
Ao contrário daquilo que se ouve da maioria dos líderes convencionais, seu discurso escapa à circularidade dos interesses e reiterações paralisantes.
A renovação que expressa ganha interesse ecumênico, para além das fronteiras dos vaticanistas, na medida em que envolveu uma superação dos limites e ambiguidades do próprio Cardeal Jorge Mario Bergoglio.
Longe de ser retórica, reflete a circunstância histórica de quem soube captar toda a extensão da suas responsabilidades e a emergência dos dias que correm.
Um ciclo está se fechando na sociedade capitalista como a conhecemos no século XXI.
A supremacia insaciável da lógica financeira perdeu a capacidade de girar a roda da história na direção das necessidades objetivas e psicológicas da humanidade.
O dinheiro celibatário, que se reproduz à margem da produção e do bem comum, coroou esse esgotamento em uma crise capitalista de superprodução de capital fictício.
O impasse coloca uma disjuntiva extremada: ou uma desvalorização épica da riqueza financeira predadora, ou a imposição, ao seu redor, de uma desigualdade exacerbada, vendida como o novo normal da humanidade.
Diante do dilúvio, Bento VI, seu antecessor, resignou-se ao encolhimento da fronteira cristã, atrás de um muro alto de expurgo e purificação doutrinária.
Renunciou.
Francisco entendeu a dimensão terminal da encruzilhada entre a entropia da finança desregulada e a ‘salvação’ que não prescinde do chão firme na terra.
Foi à luta. Que é ao mesmo tempo, por igualdade e libertação do garrote ideológico.
Por isso dá às coisas protegidas pela dissimulação midiática e plutocrática o seu nome.
O problema não é apenas que instituições internacionais, partidos e lideranças passaram a incorporar políticas inadequadas, como a desregulamentação indiscriminada e a abertura das contas de capitais a qualquer custo em vidas humanas e dilapidação ambiental.
O problema principal é a falta de capacidade política par refletir sobre o colapso correspondente fora da ‘caixinha’, isto é, fora do consenso conservador ancorado em arrocho e desemprego ante qualquer ameaça à remuneração do capital a juro.
Em 2011, em plena curva ascendente da crise, o Escritório de Avaliação Independente (IEO, na sigla e inglês) analisou 6.500 trabalhos escritos produzidos ou contratados pelo FMI nos últimos dez anos, portanto na chocadeira da crise mundial.
Praticamente todos afiançavam as boas condições do comboio capitalista que rumava em alta velocidade para espatifar a ordem neoliberal.
Pior: 62% dos economistas do Fundo afirmaram que se sentiam pressionados a alinhar as conclusões de suas pesquisas econômicas ao pensamento dominante no órgão.
Dados de então mostravam que 60% dos cargos de chefia no FMI eram ocupados por profissionais de países anglo-saxões. Nada menos que 63% dos economistas haviam obtido seu doutorado em universidades americanas.
Não por acaso, representantes das economias em desenvolvimento consideravam que esses trabalhos e seus autores apenas reiteram um conjunto prevalecente de ideias e receitas, sem espaço para visões alternativas.
A indiferenciação entre direita e a esquerda no manejo da crise é parte constitutiva da encruzilhada atual.
Por isso Francisco estremece o chão como um touro selvagem quando dá às coisas o seu nome. Por isso também políticos e governantes lhanos afundam na areia movediça quando recitam a bula do veneno para tratar dos seus efeitos.
O que chamamos de crise, hoje, é a fotografia de corpo inteiro da longa captura da esquerda mundial, e sobretudo da social-democracia europeia, pelo cânone neoliberal.
Como isso se transforma no interdito político que faz do pensamento livre do Papa Francisco uma usina transgressora carregada de frescor?
O economista Robert Kuttner explica assim a asfixia do esclarecimento e da razão diante de uma crise que empurra a humanidade para o impasse: ‘É uma questão do poder. Os proprietários da riqueza financeira se tornaram cada vez mais poderosos politicamente; os movimentos que lhes são contrários se tornaram drasticamente enfraquecidos".
A trinca aberta entre a base da sociedade e aqueles que deveriam vocalizar o conflito, mas, sobretudo, a negligência deliberada com a organização dessa bases, redundou no paradoxo de uma crise sistêmica do capitalismo que não gera forças de ruptura capaz de supera-la.
O fosso é proporcional à virulência do que se busca despejar nos ombros da sociedade.
Ou não é essa transferência leonina que se assiste hoje no Brasil, mas também na Grécia, Espanha, Itália, Portugal, França etc etc
O déficit de democracia emerge, assim, como o mais importante desequilíbrio revelado pela crise, em contraposição à hegemonia capilar, estrutural, midiática e institucional acumulada pelo capital financeiro.
É nesse ambiente de ar quase irrespirável que ganha singularidade faiscante a figura de um Papa que não desvia o olhar diante do que vê e manifesta a sua repulsa diante do espetáculo.
Apenas um governo parece ter assumido coerência equivalente.
Ao devolver ao poder plebiscitário da sociedade a decisão quanto ao passo seguinte da crise que levara a Islândia à bancarrota, em 2009, seu presidente, Ólafur Grímsson, declarou, à moda Francisco: ‘Somos uma democracia, não um sistema financeiro’.
Ser uma democracia, não um anexo do sistema financeiro é o que pode ainda devolver aos cidadãos a responsabilidade compartilhada pelas escolhas do seu destino e o comando do desenvolvimento em nosso tempo.
A blindagem ideológica do neoliberalismo –e o evidente esgotamento do seu arranjo-- ainda não foram suficientes para alterar a condução da crise justamente pela tímida delegação das decisões ao povo e a falta de uma contrapartida de coordenação internacional desse enfrentamento.
O que se assiste por enquanto é a degradante marcha em sentido contrário.
O fatalismo construído ao longo de décadas de recuos, e o correspondente desarmamento organizativo que se seguiu, explicam a sobrevida de uma hegemonia cuja base objetiva esfarelou.
O esgotamento da margem de manobra na economia não dispõe de um contrapeso à altura no ambiente político.
O desenlace permanece em aberto em todo o mundo, a evidenciar uma mudança de época que não encontrou ainda o protagonista capaz de virar a página do calendário.
O Brasil faz parte desse salto parado no ar.
E é pelo menos arriscado apostar que o terceiro turno em curso, marcado pelo passo de ganso golpista, cederá a uma negociação branda entre concessão e indulgência.
A busca do impossível – arrochar para crescer, a contração expansionista— faz água em todas as latitudes.
Oximoros -- contradições em seus próprios termos-- refletem o esgotamento de uma agenda, que só tem a oferecer a estabilidade inspirada na paz dos cemitérios.
Nesse novo normal –para sempre ou por um prazo sem fim-- nada se move, exceto as curvas da desigualdade, o empoçamento do capital fictício e a incerteza diuturna sobre tudo em todos os lugares.
Mais que isso.
Um conjunto bíblico de sobras humanas passa a ser expelido pelo sistema cujo êxito gera a própria danação.
Trata-se de uma entropia estrutural à engrenagem capitalista, cada vez mais clara na crise iniciada em 2008.
A eficiência acumulativa deprecia o valor adicionado ao promover o descarte do componente humano que impulsiona a riqueza e gera a sua própria obsolescência, ao mesmo tempo e com igual intensidade.
Sobra o ponto de fuga do capital fictício que se empanturra de bolhas à margem da produção e às expensas das dívidas públicas e dos direitos sociais, decepados para deslocar recursos ao rentismo.
Não há escolha fácil nesse ambiente difícil, assoalhado de chão mole por todos os lados.
Mas a história não é fatalidade.
O que importa perguntar aqui é o que teria sido do Papa se mantivesse em Roma a ambiguidade do seu cardinalato na Argentina?
Certamente seria uma figura de baixo relevo na desordem mundial; um pequeno conservador na cena de um mundo extremado, que busca de uma nova identidade para o desenvolvimento, a vida e a espiritualidade.
Seriam, enfim, tudo o que o cristão que agora reza missa em Cuba de olho no fim do embargo americano, decidiu não ser e não é.
A mutação processada na travessia de Bergoglio para Francisco oferece uma lição da inexcedível pertinência à encruzilhada brasileira nos dias que correm.
Só a determinação política de superar as amarras das circunstâncias pode alterar a circularidade de um processo em que a rendição da vítima é o lubrificante dopoder opressor.
O espaço estreito e perigoso das escolhas na história é a variável autônoma que restou nesse redil paralisante.
Parece pouco?
Francisco, o Papa que parece que acabou de chegar, mostra o quanto existe de potência nessa condição.
Francisco é o dado novo na mesa rasa, previsível, da policrise do nosso tempo, ao mesmo tempo uma crise do capitalismo e da civilização, cujo vórtice ambiental ameaça a própria sobrevivência da humanidade.
É disso que ele trata em sua primeira encíclica ‘Laudato si’.
E o faz de forma desabrida, como nas suas primeiras declarações ao chegar em Cuba, neste sábado (leia a cobertura de Carta Maior nesta pág; direto de Havana).
Poucos minutos depois de seu desembarque, como o terceiro papa a pisar em solo cubano, mas o primeiro a abraçar a luta pelo fim do embargo norte-americano, disparou: ‘O mundo vive uma terceira guerra mundial por etapas. Precisamos de conciliação’.
A conciliação que ele tem pleiteado é aquela baseada na maior igualdade, na menor obsessão consumista, no fim do fetiche do dinheiro, no resgate dos excluídos, na repartição da riqueza, na reconciliação entre as formas de viver e de produzir e a natureza.
O nome da crise é capitalismo turbinado, diz o idioma religioso de Francisco.
Em outubro de 2014, ele promoveu um Encontro Mundial de Movimentos Populares nas dependências do Vaticano.
O desassombro não ficou na forma.
Ao falar aos participantes, entre eles o líder do MST, João Pedro Stédile, que saiu convencido de que o Papa estava à esquerda dos presentes, resumiu o que entende por conciliação e reconciliação: ‘Nenhuma família sem teto; nenhum agricultor sem terra; nenhum ser humano sem pão’.
Mas foi além.
Como se fora uma espécie de Polanyi de batina, criticou o comércio dos recursos essenciais: o solo e a água, por exemplo,
O filósofo e economista húngaro Karl Polanyi (1886/1964) autor de ‘A grande transformação’, advertiu pioneiramente para esse risco.
Elementos essenciais ao equilíbrio da vida e à construção do bem comum, como o trabalho, a terra --e também o dinheiro, disse Polanyi, filho de húngaros, nascido em Viena, não deveriam ser submetidos a um liberalismo subordinado à cobiça do interesse privado.
As evidências do nosso tempo mostram que ele tinha razão.
Nesse mundo onde tudo o que é rentável deve ser desregulado, para a livre mastigação dos mercados, os recursos que formam as bases da vida na terra, e o ‘recurso’ humano, encontram-se ameaçados pela inconciliável relação entre o capitalismo, a temperança e o equilíbrio ambiental.
Há dois anos e meio do seu Papado, iniciado em março de 2013, Francisco parece que acabou de entrar na sala.
É a visita que a qualquer momento pode trazer novidades.
Não é truque, nem miragem.
Ao contrário daquilo que se ouve da maioria dos líderes convencionais, seu discurso escapa à circularidade dos interesses e reiterações paralisantes.
A renovação que expressa ganha interesse ecumênico, para além das fronteiras dos vaticanistas, na medida em que envolveu uma superação dos limites e ambiguidades do próprio Cardeal Jorge Mario Bergoglio.
Longe de ser retórica, reflete a circunstância histórica de quem soube captar toda a extensão da suas responsabilidades e a emergência dos dias que correm.
Um ciclo está se fechando na sociedade capitalista como a conhecemos no século XXI.
A supremacia insaciável da lógica financeira perdeu a capacidade de girar a roda da história na direção das necessidades objetivas e psicológicas da humanidade.
O dinheiro celibatário, que se reproduz à margem da produção e do bem comum, coroou esse esgotamento em uma crise capitalista de superprodução de capital fictício.
O impasse coloca uma disjuntiva extremada: ou uma desvalorização épica da riqueza financeira predadora, ou a imposição, ao seu redor, de uma desigualdade exacerbada, vendida como o novo normal da humanidade.
Diante do dilúvio, Bento VI, seu antecessor, resignou-se ao encolhimento da fronteira cristã, atrás de um muro alto de expurgo e purificação doutrinária.
Renunciou.
Francisco entendeu a dimensão terminal da encruzilhada entre a entropia da finança desregulada e a ‘salvação’ que não prescinde do chão firme na terra.
Foi à luta. Que é ao mesmo tempo, por igualdade e libertação do garrote ideológico.
Por isso dá às coisas protegidas pela dissimulação midiática e plutocrática o seu nome.
O problema não é apenas que instituições internacionais, partidos e lideranças passaram a incorporar políticas inadequadas, como a desregulamentação indiscriminada e a abertura das contas de capitais a qualquer custo em vidas humanas e dilapidação ambiental.
O problema principal é a falta de capacidade política par refletir sobre o colapso correspondente fora da ‘caixinha’, isto é, fora do consenso conservador ancorado em arrocho e desemprego ante qualquer ameaça à remuneração do capital a juro.
Em 2011, em plena curva ascendente da crise, o Escritório de Avaliação Independente (IEO, na sigla e inglês) analisou 6.500 trabalhos escritos produzidos ou contratados pelo FMI nos últimos dez anos, portanto na chocadeira da crise mundial.
Praticamente todos afiançavam as boas condições do comboio capitalista que rumava em alta velocidade para espatifar a ordem neoliberal.
Pior: 62% dos economistas do Fundo afirmaram que se sentiam pressionados a alinhar as conclusões de suas pesquisas econômicas ao pensamento dominante no órgão.
Dados de então mostravam que 60% dos cargos de chefia no FMI eram ocupados por profissionais de países anglo-saxões. Nada menos que 63% dos economistas haviam obtido seu doutorado em universidades americanas.
Não por acaso, representantes das economias em desenvolvimento consideravam que esses trabalhos e seus autores apenas reiteram um conjunto prevalecente de ideias e receitas, sem espaço para visões alternativas.
A indiferenciação entre direita e a esquerda no manejo da crise é parte constitutiva da encruzilhada atual.
Por isso Francisco estremece o chão como um touro selvagem quando dá às coisas o seu nome. Por isso também políticos e governantes lhanos afundam na areia movediça quando recitam a bula do veneno para tratar dos seus efeitos.
O que chamamos de crise, hoje, é a fotografia de corpo inteiro da longa captura da esquerda mundial, e sobretudo da social-democracia europeia, pelo cânone neoliberal.
Como isso se transforma no interdito político que faz do pensamento livre do Papa Francisco uma usina transgressora carregada de frescor?
O economista Robert Kuttner explica assim a asfixia do esclarecimento e da razão diante de uma crise que empurra a humanidade para o impasse: ‘É uma questão do poder. Os proprietários da riqueza financeira se tornaram cada vez mais poderosos politicamente; os movimentos que lhes são contrários se tornaram drasticamente enfraquecidos".
A trinca aberta entre a base da sociedade e aqueles que deveriam vocalizar o conflito, mas, sobretudo, a negligência deliberada com a organização dessa bases, redundou no paradoxo de uma crise sistêmica do capitalismo que não gera forças de ruptura capaz de supera-la.
O fosso é proporcional à virulência do que se busca despejar nos ombros da sociedade.
Ou não é essa transferência leonina que se assiste hoje no Brasil, mas também na Grécia, Espanha, Itália, Portugal, França etc etc
O déficit de democracia emerge, assim, como o mais importante desequilíbrio revelado pela crise, em contraposição à hegemonia capilar, estrutural, midiática e institucional acumulada pelo capital financeiro.
É nesse ambiente de ar quase irrespirável que ganha singularidade faiscante a figura de um Papa que não desvia o olhar diante do que vê e manifesta a sua repulsa diante do espetáculo.
Apenas um governo parece ter assumido coerência equivalente.
Ao devolver ao poder plebiscitário da sociedade a decisão quanto ao passo seguinte da crise que levara a Islândia à bancarrota, em 2009, seu presidente, Ólafur Grímsson, declarou, à moda Francisco: ‘Somos uma democracia, não um sistema financeiro’.
Ser uma democracia, não um anexo do sistema financeiro é o que pode ainda devolver aos cidadãos a responsabilidade compartilhada pelas escolhas do seu destino e o comando do desenvolvimento em nosso tempo.
A blindagem ideológica do neoliberalismo –e o evidente esgotamento do seu arranjo-- ainda não foram suficientes para alterar a condução da crise justamente pela tímida delegação das decisões ao povo e a falta de uma contrapartida de coordenação internacional desse enfrentamento.
O que se assiste por enquanto é a degradante marcha em sentido contrário.
O fatalismo construído ao longo de décadas de recuos, e o correspondente desarmamento organizativo que se seguiu, explicam a sobrevida de uma hegemonia cuja base objetiva esfarelou.
O esgotamento da margem de manobra na economia não dispõe de um contrapeso à altura no ambiente político.
O desenlace permanece em aberto em todo o mundo, a evidenciar uma mudança de época que não encontrou ainda o protagonista capaz de virar a página do calendário.
O Brasil faz parte desse salto parado no ar.
E é pelo menos arriscado apostar que o terceiro turno em curso, marcado pelo passo de ganso golpista, cederá a uma negociação branda entre concessão e indulgência.
A busca do impossível – arrochar para crescer, a contração expansionista— faz água em todas as latitudes.
Oximoros -- contradições em seus próprios termos-- refletem o esgotamento de uma agenda, que só tem a oferecer a estabilidade inspirada na paz dos cemitérios.
Nesse novo normal –para sempre ou por um prazo sem fim-- nada se move, exceto as curvas da desigualdade, o empoçamento do capital fictício e a incerteza diuturna sobre tudo em todos os lugares.
Mais que isso.
Um conjunto bíblico de sobras humanas passa a ser expelido pelo sistema cujo êxito gera a própria danação.
Trata-se de uma entropia estrutural à engrenagem capitalista, cada vez mais clara na crise iniciada em 2008.
A eficiência acumulativa deprecia o valor adicionado ao promover o descarte do componente humano que impulsiona a riqueza e gera a sua própria obsolescência, ao mesmo tempo e com igual intensidade.
Sobra o ponto de fuga do capital fictício que se empanturra de bolhas à margem da produção e às expensas das dívidas públicas e dos direitos sociais, decepados para deslocar recursos ao rentismo.
Não há escolha fácil nesse ambiente difícil, assoalhado de chão mole por todos os lados.
Mas a história não é fatalidade.
O que importa perguntar aqui é o que teria sido do Papa se mantivesse em Roma a ambiguidade do seu cardinalato na Argentina?
Certamente seria uma figura de baixo relevo na desordem mundial; um pequeno conservador na cena de um mundo extremado, que busca de uma nova identidade para o desenvolvimento, a vida e a espiritualidade.
Seriam, enfim, tudo o que o cristão que agora reza missa em Cuba de olho no fim do embargo americano, decidiu não ser e não é.
A mutação processada na travessia de Bergoglio para Francisco oferece uma lição da inexcedível pertinência à encruzilhada brasileira nos dias que correm.
Só a determinação política de superar as amarras das circunstâncias pode alterar a circularidade de um processo em que a rendição da vítima é o lubrificante dopoder opressor.
O espaço estreito e perigoso das escolhas na história é a variável autônoma que restou nesse redil paralisante.
Parece pouco?
Francisco, o Papa que parece que acabou de chegar, mostra o quanto existe de potência nessa condição.
segunda-feira, 21 de setembro de 2015
COP: 21 a fábula do capitalismo verde
Najar Tubino
Era uma vez um sistema econômico autodestrutivo, disseminado por todo o planeta e agindo tal qual uma nau esburacada quase a ponto de afundar, que descobre uma fórmula mágica de resolver a situação: a proteção ambiental, a proteção das florestas, dos recursos hídricos, da agricultura e pecuária, da produção de alimentos. Tudo organizado de forma ética, transparente e sustentável. Mas tem um senão: criar novos mecanismos de mercados, novas formas de financiamento, novas tecnologias para enterrar gases e transmitir aos necessitados, capacitando-os para integrarem o novo sistema. O capitalismo maquiado de verde afina seu discurso para entrar com pompa na arena da maior discussão planetária sobre mudança climática, que inicia em 30 de novembro. Desde a década de 1990, as corporações e suas associações participam do sistema ONU, de conferências e convenções, podem se manifestar no início das plenárias, distribuir material e acompanhar as discussões.
A própria ONU criou o Pacto Global em 2000 para angariar apoio das empresas no combate aos problemas crônicos da humanidade – fome, miséria, destruição do ambiente. São mais de oito mil signatários em 145 países. Nos últimos anos as empresas se organizaram no Conselho Mundial de Negócios para o Desenvolvimento Sustentável (WBSCD), na sigla em inglês, que na versão brasileira e latino-americana é o Conselho Empresarial de Desenvolvimento Sustentável. Porém, as lideranças empresariais formaram novos pactos e alianças. E lançaram recentemente o programa Ação 2020, com propostas que envolvem uma economia de baixo carbono. A versão brasileira está registrada num documento de 32 páginas. O movimento mundial reúne 146 empresas e 106 investidores. A dirigente do CEBDS, Marina Grossi declarou no lançamento do programa:
“- As empresas estão mais engajadas para as negociações climáticas, muito mais articuladas e com voz ativa dentro desse processo”.
A Coalizão do agronegócio
A lista dos patrocinadores inclui os bancos Santander, Itaú, Petrobras e Governo Federal, na categoria Master; Braskem, Vale e Votorantim, na categoria Ouro; e Schell e BASF, na categoria prata. Ao mesmo tempo, outros 80 signatários, entre associações empresariais como ÚNICA (indústria da cana), Sociedade Rural Brasileira, empresas como CSN, BASF, Fibria, Klabin, Natura, Suzano e outras, juntamente com entidades como o Instituto Ethos, FGV, Instituto Sócioambiental, SOS Mata Atlântica, Greenpeace lançaram a Coalizão Brasil Clima – Florestas e Agricultura.
“- Somos uma coalizão formada por associações empresariais, empresas, organizações da sociedade civil e indivíduos interessados em contribuir para a promoção de uma nova economia de baixo carbono, competitiva, responsável e inclusiva, e para maior sinergia entre as agendas de proteção, conservação e uso sustentável das florestas, agricultura, mitigação e adaptação às mudanças climáticas”, diz o documento de lançamento da plataforma.
Outro trecho:
“- Entendemos que o estímulo à agricultura, pecuária e economia de base florestal competitivos, pujantes e sustentáveis, que simultaneamente garantem a proteção, manejo, restauração e plantio de florestas, assegurem a disponibilidade de água, conservação dos ecossistemas e os serviços ambientais.”
Na prática só em 2020
Enfim, a Coalizão Brasil Clima – Florestas e Agricultura quer impulsionar o Brasil para a liderança global da economia sustentável e de baixo carbono, gerando prosperidade para todos, com inclusão social, geração de emprego e renda. Claro, esqueci de mencionar, que eles vão combater o desmatamento, a exploração ilegal de madeira e também querem implementar mecanismos para valorar e remunerar a manutenção e a ampliação dos serviços ecossistêmicos.
O documento já foi encaminhado ao governo federal porque o prazo para o anúncio das metas, que o Brasil deverá implantar dentro da programação da COP 21 encerra dia 1º de outubro. A Coalizão quer debater o assunto, a sociedade civil precisa participar do processo. Pela burocracia da ONU, todos os 196 países precisam apresentar o que eles chamam de Contribuições Nacionalmente Determinadas Pretendidas (INDCS), na sigla em inglês. Os países apresentam as metas de redução das emissões de gases estufa e as ações para implantá-las. Depois da Convenção do Clima em Paris haverá um prazo de cinco anos até a execução. Ou seja, independente de qualquer acordo na COP 21, na prática as medidas só valem a partir de 2020.
O fracasso de Copenhague persiste
O Brasil está entre os 10 maiores emissores de gases estufa – 1,57 giga toneladas em 2013 -, sendo que 34,6% relacionado ao uso da terra, traduzindo: desmatamento, fogo e posterior plantio de capim ou soja, algodão, milho. A agropecuária responde por 26,6%, a energia por 30,2%, a indústria por 5,5% e os resíduos por 3,1%. A energia ultrapassou a agropecuária no último ano por conta das termoelétricas movidas a diesel e carvão que foram acionadas no Brasil. Para não restar dúvidas sobre qual é a fonte das emissões, os estados do Pará e Mato Grosso são os campeões.
As perspectivas da próxima Convenção do Clima não são nada animadoras. Não apenas por conta da participação das corporações e suas associações, mas também porque não haverá a Cúpula dos Povos, que sempre reafirmava as verdadeiras preocupações das populações e, principalmente, as denúncias dos fatos que ocorrem no cotidiano das vidas dos trabalhadores e trabalhadoras rurais e urbanos neste planeta. As corporações fazem parte do debate, juntamente com algumas organizações ambientalistas internacionais, que dialogam, para usar o termo do mercado, com as empresas, para a sustentabilidade do mundo. O fracasso de Copenhague, que se traduziu num acordo político que não tinha nenhum valor legal para efeito de uma convenção internacional, continua a perseguir os negociadores.
O tom é de novos mecanismos de mercado
Desta vez, o teatro não vai funcionar, ou seja, a presença de 100 dirigentes mundiais, entre eles Barack Obama. Obama está se despedindo do cargo, além disso, qualquer acordo firmado em Paris precisa necessariamente ser aprovado pelos parlamentos dos países. As metas de reduções das emissões são divulgadas de todas as partes. A União Europeia 40%, Estados Unidos 32%, Brasil entre 36 e 38%, China entre 60% e 65% - porém com uma metodologia que já é um ponto de discórdia. A questão central é que o documento base ainda está com 85 páginas e tem mais de 200 artigos. A decisão entre os países para efeito da validade do novo tratado é unânime, qualquer país individualmente pode vetar a proposta.
Entretanto, o tom das negociações está colocado: novos mecanismos de mercado. O Banco Mundial deverá gerir o Fundo Verde, que pretende aplicar US$100 bilhões em 2020 no processo de combate às mudanças climáticas. Até agora só conseguiram US$10 bilhões – por sinal, a ONU informou que falta verba para a realização da convenção – o déficit é de US$1,2 milhão. Além, das alianças e pactos citados, surgiu outra chamada de Aliança Global para uma agricultura climaticamente inteligente (Global Alliance for Climate Smart Agriculture) com a proposta básica de implantar a captura e estoque de carbono no solo e no subsolo. A tecnologia definida pela sigla em inglês CCS.
Agricultura familiar e agroecologia fora dos planos
É a proposta preferida das petrolíferas, da siderurgia, da indústria de cimento, das maiores poluidoras do mundo. Mas também é do agronegócio das monoculturas do eucalipto, da soja e da pecuária. A Coalizão Brasil Clima defende a expansão da agricultura e pecuária de baixo carbono, que envolve a recuperação das pastagens degradadas. Este é o mantra, enquanto os piratas do agronegócio derrubam a floresta amazônica e o boi avança para o norte.
Mas o mais impressionante de tudo isso é que as alianças empresariais, os representantes da sociedade civil que participam dessas coalizões, sempre de forma ética e transparente, não mencionam as seguintes palavras: agricultura familiar e agroecologia. Como uma Coalizão do Clima trata do uso da terra, da agricultura do Brasil e não menciona mais de 12 milhões de pessoas que trabalham na agricultura familiar, que são a maior fonte de trabalho na atividade e são os responsáveis pela produção de alimentos que vai para a mesa dos brasileiros? E não enfoca o único plano governamental no mundo de Produção Orgânica e Agroecológica, que na prática protege o ambiente, a biodiversidade e a vida dos trabalhadores e trabalhadoras e dos consumidores, porque não usam venenos. A Coalizão Clima defende a expansão das florestas, que não monoculturas comerciais de exóticas, da soja e da pecuária de baixo carbono, enquanto os fazendeiros do Centro-Oeste continuam colocando fogo no cerrado e comprando fazendas no MATOPIBA e na Amazônia.
A própria ONU criou o Pacto Global em 2000 para angariar apoio das empresas no combate aos problemas crônicos da humanidade – fome, miséria, destruição do ambiente. São mais de oito mil signatários em 145 países. Nos últimos anos as empresas se organizaram no Conselho Mundial de Negócios para o Desenvolvimento Sustentável (WBSCD), na sigla em inglês, que na versão brasileira e latino-americana é o Conselho Empresarial de Desenvolvimento Sustentável. Porém, as lideranças empresariais formaram novos pactos e alianças. E lançaram recentemente o programa Ação 2020, com propostas que envolvem uma economia de baixo carbono. A versão brasileira está registrada num documento de 32 páginas. O movimento mundial reúne 146 empresas e 106 investidores. A dirigente do CEBDS, Marina Grossi declarou no lançamento do programa:
“- As empresas estão mais engajadas para as negociações climáticas, muito mais articuladas e com voz ativa dentro desse processo”.
A Coalizão do agronegócio
A lista dos patrocinadores inclui os bancos Santander, Itaú, Petrobras e Governo Federal, na categoria Master; Braskem, Vale e Votorantim, na categoria Ouro; e Schell e BASF, na categoria prata. Ao mesmo tempo, outros 80 signatários, entre associações empresariais como ÚNICA (indústria da cana), Sociedade Rural Brasileira, empresas como CSN, BASF, Fibria, Klabin, Natura, Suzano e outras, juntamente com entidades como o Instituto Ethos, FGV, Instituto Sócioambiental, SOS Mata Atlântica, Greenpeace lançaram a Coalizão Brasil Clima – Florestas e Agricultura.
“- Somos uma coalizão formada por associações empresariais, empresas, organizações da sociedade civil e indivíduos interessados em contribuir para a promoção de uma nova economia de baixo carbono, competitiva, responsável e inclusiva, e para maior sinergia entre as agendas de proteção, conservação e uso sustentável das florestas, agricultura, mitigação e adaptação às mudanças climáticas”, diz o documento de lançamento da plataforma.
Outro trecho:
“- Entendemos que o estímulo à agricultura, pecuária e economia de base florestal competitivos, pujantes e sustentáveis, que simultaneamente garantem a proteção, manejo, restauração e plantio de florestas, assegurem a disponibilidade de água, conservação dos ecossistemas e os serviços ambientais.”
Na prática só em 2020
Enfim, a Coalizão Brasil Clima – Florestas e Agricultura quer impulsionar o Brasil para a liderança global da economia sustentável e de baixo carbono, gerando prosperidade para todos, com inclusão social, geração de emprego e renda. Claro, esqueci de mencionar, que eles vão combater o desmatamento, a exploração ilegal de madeira e também querem implementar mecanismos para valorar e remunerar a manutenção e a ampliação dos serviços ecossistêmicos.
O documento já foi encaminhado ao governo federal porque o prazo para o anúncio das metas, que o Brasil deverá implantar dentro da programação da COP 21 encerra dia 1º de outubro. A Coalizão quer debater o assunto, a sociedade civil precisa participar do processo. Pela burocracia da ONU, todos os 196 países precisam apresentar o que eles chamam de Contribuições Nacionalmente Determinadas Pretendidas (INDCS), na sigla em inglês. Os países apresentam as metas de redução das emissões de gases estufa e as ações para implantá-las. Depois da Convenção do Clima em Paris haverá um prazo de cinco anos até a execução. Ou seja, independente de qualquer acordo na COP 21, na prática as medidas só valem a partir de 2020.
O fracasso de Copenhague persiste
O Brasil está entre os 10 maiores emissores de gases estufa – 1,57 giga toneladas em 2013 -, sendo que 34,6% relacionado ao uso da terra, traduzindo: desmatamento, fogo e posterior plantio de capim ou soja, algodão, milho. A agropecuária responde por 26,6%, a energia por 30,2%, a indústria por 5,5% e os resíduos por 3,1%. A energia ultrapassou a agropecuária no último ano por conta das termoelétricas movidas a diesel e carvão que foram acionadas no Brasil. Para não restar dúvidas sobre qual é a fonte das emissões, os estados do Pará e Mato Grosso são os campeões.
As perspectivas da próxima Convenção do Clima não são nada animadoras. Não apenas por conta da participação das corporações e suas associações, mas também porque não haverá a Cúpula dos Povos, que sempre reafirmava as verdadeiras preocupações das populações e, principalmente, as denúncias dos fatos que ocorrem no cotidiano das vidas dos trabalhadores e trabalhadoras rurais e urbanos neste planeta. As corporações fazem parte do debate, juntamente com algumas organizações ambientalistas internacionais, que dialogam, para usar o termo do mercado, com as empresas, para a sustentabilidade do mundo. O fracasso de Copenhague, que se traduziu num acordo político que não tinha nenhum valor legal para efeito de uma convenção internacional, continua a perseguir os negociadores.
O tom é de novos mecanismos de mercado
Desta vez, o teatro não vai funcionar, ou seja, a presença de 100 dirigentes mundiais, entre eles Barack Obama. Obama está se despedindo do cargo, além disso, qualquer acordo firmado em Paris precisa necessariamente ser aprovado pelos parlamentos dos países. As metas de reduções das emissões são divulgadas de todas as partes. A União Europeia 40%, Estados Unidos 32%, Brasil entre 36 e 38%, China entre 60% e 65% - porém com uma metodologia que já é um ponto de discórdia. A questão central é que o documento base ainda está com 85 páginas e tem mais de 200 artigos. A decisão entre os países para efeito da validade do novo tratado é unânime, qualquer país individualmente pode vetar a proposta.
Entretanto, o tom das negociações está colocado: novos mecanismos de mercado. O Banco Mundial deverá gerir o Fundo Verde, que pretende aplicar US$100 bilhões em 2020 no processo de combate às mudanças climáticas. Até agora só conseguiram US$10 bilhões – por sinal, a ONU informou que falta verba para a realização da convenção – o déficit é de US$1,2 milhão. Além, das alianças e pactos citados, surgiu outra chamada de Aliança Global para uma agricultura climaticamente inteligente (Global Alliance for Climate Smart Agriculture) com a proposta básica de implantar a captura e estoque de carbono no solo e no subsolo. A tecnologia definida pela sigla em inglês CCS.
Agricultura familiar e agroecologia fora dos planos
É a proposta preferida das petrolíferas, da siderurgia, da indústria de cimento, das maiores poluidoras do mundo. Mas também é do agronegócio das monoculturas do eucalipto, da soja e da pecuária. A Coalizão Brasil Clima defende a expansão da agricultura e pecuária de baixo carbono, que envolve a recuperação das pastagens degradadas. Este é o mantra, enquanto os piratas do agronegócio derrubam a floresta amazônica e o boi avança para o norte.
Mas o mais impressionante de tudo isso é que as alianças empresariais, os representantes da sociedade civil que participam dessas coalizões, sempre de forma ética e transparente, não mencionam as seguintes palavras: agricultura familiar e agroecologia. Como uma Coalizão do Clima trata do uso da terra, da agricultura do Brasil e não menciona mais de 12 milhões de pessoas que trabalham na agricultura familiar, que são a maior fonte de trabalho na atividade e são os responsáveis pela produção de alimentos que vai para a mesa dos brasileiros? E não enfoca o único plano governamental no mundo de Produção Orgânica e Agroecológica, que na prática protege o ambiente, a biodiversidade e a vida dos trabalhadores e trabalhadoras e dos consumidores, porque não usam venenos. A Coalizão Clima defende a expansão das florestas, que não monoculturas comerciais de exóticas, da soja e da pecuária de baixo carbono, enquanto os fazendeiros do Centro-Oeste continuam colocando fogo no cerrado e comprando fazendas no MATOPIBA e na Amazônia.
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